Devido ao crescimento da Aviação
Comercial no Brasil, muitos pilotos estão sendo promovidos a comandantes. Estou
republicando este POST, publicado inicialmente em 2009, atualizado com novas experiências
e conselhos.
Divirtam-se.
Perfil do nosso herói:
Solteiro (namora a Fake
Blond), 28 anos, bom piloto, bons conhecimentos técnicos sobre a aeronave que
voa. Conhecimentos medíocres sobre aviação e regulamentos.
Situação na Empresa: checado no exame de proficiência de PLA,
aguarda sua licença para poder exercer a função de Comandante de Linha Aérea,
pela primeira vez.
Elocubrações
do Cmte. Smart:
Logo após o exame de proficiência para obtenção do PLA:
Finalmente, depois de muito sonho e dedicação… SOU COMANDANTE.
Poderia ter brilhado no exame de proficiência. Creio que fiquei nervoso. O
importante é que fui aprovado e agora é só aguardar a licença e partir para o
abraço. Acabou a preocupação de se adaptar a cada comandante. Ter de saber como
cada comandante gosta de voar, ter de se preocupar em não contrariá-lo… ninguém
merece. Não necessito mais ser tão técnico, saber todos os procedimentos e
estar sempre ligado e preparado para as possíveis perguntas do comandante.
Agora posso chamar a comissária a qualquer hora e até mesmo escolher o que
quero comer. Chega de comer aquele franguinho ressecado e pálido.
E mais, aquela despachante linda que
só tem olhos para o lado esquerdo agora vai me enxergar.
Quatro dias antes do primeiro voo na função de COMANDANTE:
Só estou um pouco preocupado com o
que o Chefe de Operações me falou. Por que será que ele enfatizou tanto aquela
frase do CBA – “O comandante é o responsável pela operação e pela segurança
da aeronave e dos passageiros”.
Grande coisa, todo mundo sabe disso. Talvez
seja melhor eu baixar o CBA a dar uma olhada. Pode ter mais informações
importantes.
Também, aquele papo de empatia, trabalho em equipe, delegação de
tarefas, respeito… Acho que o Chefe queria era me impressionar.
Sabe de uma coisa - vou baixar também
o RBAC 121 e dar uma boa estudada. Vou rever o MGO, agora imbuído de que sou
COMANDANTE. Quando a Fake Blond souber da minha promoção!!! Pensando bem, vou
lhe pedir emprestado aquele livro de autoajuda sobre liderança. Talvez seja
melhor ver direitinho como posso praticar essa tal de empatia e as outras
bobagens que o Chefe mencionou.
A QUE PONTO CHEGUEI…
O meu primo, o advogado Carlos Justo, me assustou. Ele não tinha
nada que falar que, perante a lei, o comandante é quem responde por tudo que
acontecer no voo.
É, vou ter de estudar muito. Faz parte. Afinal de contas, meu
salário quase que dobrou.
Três dias antes do primeiro voo e após 20 horas de legislação e
MGO:
Cara, que confusão mental… tive até pesadelo. Sonhei que estava
sendo julgado por crime culposo porque não liguei o ”USE CINTOS” e aquela
velhinha se machucou. Ela não tinha nada que ficar sem cintos.
Talvez seja melhor pedir conselhos
aos mais experientes. Afinal de contas, eles parecem tão tranquilos. Vou
começar pelo meu instrutor. Ele disse que eu poderia contar com ele.
Conselhos do Instrutor, o comandante Sá Btudo:
Pense assim – “estou
transportando uma pessoa que pagou para viajar em segurança”. Ou, se
preferir, de uma maneira mais contundente, imagine como gostaria que a aeronave
fosse operada quando sua família estivesse a bordo.
Você gostaria que uma operação ilegal fosse realizada com seu
filho a bordo? Que os mínimos fossem “varados”? Que o avião estivesse voando
com item NO GO? Que o piloto entrasse em um CB? Que o comandante fosse imaturo
e quisesse aparecer para o outro tripulante, realizando manobras não previstas?
Smart pensou – É… meu instrutor tentou ajudar, mas não resolveu muito. Só
colocou mais “pilha”. Vou voltar a estudar os regulamentos. Não estou muito
preocupado com um filho que ainda não tenho. Eu não quero é ser preso porque
uma velhinha folgada não usou o cinto de segurança.
Dois dias antes do
primeiro vôo e depois de muito estudo:
Minha cabeça vai explodir. Não consigo mais pensar de uma
maneira organizada. Acho que peguei muita informação e tive um “overload”
cerebral.
Bem que meu amigo me disse para
prestar atenção nas aulas do curso de Elevação de Nível. Na ocasião julguei que
esse negócio de MGO e RBAC 121 fosse tudo bobagem... só para constar.
Já sei, vou falar com aquele amigo do meu pai, o comandante
Veter Ano. Ele é um comandante experiente e ex-militar. Esse pessoal da caserna
aprende a lidar com pessoas e acho que ele pode me dar boas dicas.
Conselhos do comandante Veter Ano:
Antes de tudo, você deve
pensar na sua carreira. Não queira fazer seu nome do dia para a noite. Eu penso
que a melhor maneira é não querer apressar esse processo e deixar que aconteça
naturalmente. Seja um bom profissional e um bom funcionário. Com o passar do
tempo, as pessoas reconhecem sua competência e aí fica bem fácil. Primeiro faz
o GOL. Não adianta falar que sabe fazer gols e que joga bem.
Respeite as pessoas. Só assim você será respeitado. Peça opinião
e estimule a participação de todos. Lembre-se… eles são parte da solução do
problema, mas se você não os gerenciar bem eles podem se tornar parte do
problema.
Não use sua autoridade, exceto quando extremamente necessário.
Se você usar a força vai humilhar a pessoa, perder a cooperação e arrumar
inimigos. Só olhe de cima para baixo se for para auxiliar alguém a se levantar.
Respeite sua Empresa, seus chefes e seus colegas de trabalho.
Não critique se não for para melhorar. Além disso, elogie em público e reprima
em particular.
Jamais tome uma decisão baseada em interesses próprios.
Conheça a legislação, sua aeronave e o Manual de Operações da
Empresa, o MGO. O MGO é baseado no RBAC 121 e é aprovado na ANAC. Ele contém
boas orientações sobre como proceder nas diversas situações. Por exemplo,
procedimentos para desembarcar com os motores funcionando, procedimentos durante
o reabastecimento, voo com radar inoperante, transporte de mulher grávida, de
enfermos, morte a bordo, etc.
Lembre-se, perante a Lei
vale o que está escrito.
Nada de se emocionar e
querer efetuar o voo a qualquer custo. Avalie as consequências. Consulte a MEL,
o MGO, o RBHA 121 e também a regulamentação do aeronauta.
Pense bem antes de dizer NÃO. Pesquise todas as opções e saídas
antes de dizer NÃO. Dizer NÃO e depois mudar de ideia detona sua credibilidade.
Confiança e respeito têm que ser conquistadas.
Escreva todas as anormalidades no Relatório de Bordo - Para reforçar, vou lhe
contar uma história real: eu era o comandante do voo e estava em Porto Seguro.
Durante o embarque, notei uma senhora muito debilitada embarcando. O voo
previsto era de Porto Seguro para Campinas, mas a Empresa decidir ir para GRU,
pois o voo estava atrasado e o pouso em VCP foi cancelado (os passageiros
seriam levados de GRU para Campinas de ônibus). Alguém se apresentou como
médico da passageira e disse que ela corria o risco de morrer durante o trajeto
terrestre GRU-Campinas.
Consultado por mim, o Diretor Comercial foi enfático - “F._ _
_ _-se a passageira, o voo é charter e vai para GRU”. Com medo que
acontecesse algum problema no voo, chamei o médico e disse que, caso ele
quisesse que a passageira embarcasse, teria que fazer um atestado dizendo que ela
poderia ser transportada de avião. Anotei tudo no livro de bordo (inclusive o
“F_ _ _ _-se a passageira”, de uma maneira “eufemisada”). Anexei o atestado do
médico e segui viagem.
Três anos depois, fui chamado em juízo. A mulher faleceu (alguns dias depois da
viagem) e o filho entrou com uma ação civil e outra criminal contra a empresa e
contra o comandante (este seu amigo). Não tive maiores problemas porque havia
documentado tudo.
Caraca, de novo o tal de crime culposo – pensou Smart.
O comandante Veter Ano continuou:
Lidar com a pressão dos mecânicos, passageiros e despachantes de
solo é outra atividade que exige muita arte. A regra básica é a seguinte: NÃO
DEIXE QUALQUER PRESSÃO AFETAR A SEGURANÇA DA OPERAÇÃO.
Algum mecânico pode querer te forçar a voar com itens em pane,
pneu careca, etc. DEFESA - escrever a pane no livro de bordo – aí ele terá de
pensar melhor para liberar o avião, já que o .... dele está na reta. Sobre esse
assunto, outra história ilustrativa: ao fazer a Inspeção Externa, verifiquei
que estava aparecendo lona em um dos pneus. Falei com o mecânico e ele disse
que “dava prá fazer, pelo menos, 3 pousos”. Peguei o livro e escrevi: “Pneu aparecendo a lona”. Solicitei ao mecânico
que liberasse o voo. O pneu foi trocado.
“Os despachantes podem
querer despachar crianças sem documentos, colocar passageiros no “jump seat”,
transformar uma criança de 5 anos em colo, embarcar doentes graves sem
autorização médica, etc. Eles vão te pedir inocentemente para liberar.
Só você será
responsabilizado se algo sair errado e a “lei” entrar na jogada. O
comandante é quem responde. O despachante vai simplesmente dizer que o
comandante autorizou. DEFESA - conhecer o regulamento (RBAC 121) e o MGO e
aprender a dizer NÃO (com calma e elegância).
Lidar com passageiros exige
prudência: se você passar por uma área de turbulência e esquecer-se de ligar o
“USE CINTOS”, será responsabilizado caso alguém se machuque. DEFESA - ligar o
“USE CINTOS” em caso de dúvida. Também é recomendada uma boa coordenação
com a tripulação de cabine. Antecipe uma situação de turbulência. Muitas vezes,
a tripulação de cabine necessita interromper o serviço de bordo.
ATRASOS - muito cuidado
com as explicações aos passageiros sobre atrasos – conte apenas o fato e nunca coloque a culpa
em ninguém.
ESSE CARA ESTAVA NO MEU PESADELO,
pensou Smart.
Preste atenção ao que vou dizer, continuou Veter Ano: muitas vezes, o
comandante faz “vista grossa” aos regulamentes pensando estar ajudando a
Empresa. Não pensa nas consequências caso ocorra um acidente. Atualmente, as
empresas de seguro estão capacitadas a investigar tudo à procura de
justificativa para não pagar o seguro.
O QUE PARECIA BOM PARA A EMPRESA, PODE NÃO SER TÃO BOM.
E aí ele vai ouvir a seguinte pergunta – “Alguém te forçou a
fazer isso?”
Lembre-se da seguinte prioridade:
-
1- SEGURANÇA, 2- SEGURANÇA, 3- SEGURANÇA;
4- ECONOMIA/CONFORTO DOS PASSAGEIROS.
Combustível é outro assunto muito sério: certa vez fiquei com
muito pouco combustível e tive que declarar emergência. Acredite, minha “situation
awareness” foi para o espaço. Meu cérebro processava vários arquivos ao mesmo
tempo... quase travou.
Tão importante quanto ter combustível suficiente para a situação
é a decisão de prosseguir para a alternativa.
Administrar bem a decisão da posição, altitude e distância onde
efetuar uma espera pode fazer a diferença. Na maioria das vezes, existe uma
relação entre o FL da espera, a distância do aeroporto de destino e a posição
da espera. Se um destes fatores for a variável fixa, escolha as demais de
acordo. Se não houver uma imposição, analise a melhor situação.
Por exemplo - você está voando de A para B e B fechou devido a nevoeiro,
com previsão de abrir em 30 minutos, é melhor esperar entre B e C, pois se B
não abrir você estará mais perto da alternativa (C).
A distância do aeroporto de destino e o nível de espera devem ser
adequados. Se você vai efetuar uma espera no FL 300, avalie ficar a aproximadamente
90 NM do aeroporto de destino, mas na rota da alternativa. Com esta manobra,
você pode ganhar 90 NM ao prosseguir para a alternativa.
Se a espera no FL 150 for um critério fixo, fique a aproximadamente
45 NM do aeroporto de destino.
Em resumo – o local, distância e altitude da espera são fatores inter-
relacionados e que podem aumentar o tempo de espera.
É claro que esta decisão deve ser apoiada em todos os fatores conhecidos.
Smart, pouco
antes do primeiro voo como comandante:
Penso que o salário de comandante deveria ser bem maior. Será
que vai acontecer alguma situação onde eu tenha que tomar uma decisão delicada.
Bom, seja o que Deus quiser. Mas antes vou dar uma passadinha no banheiro.
Aquele café da manhã não desceu bem.
Notas do autor:
Estes fatos realmente ocorreram e continuam ocorrendo.
Smart, atualmente, é comandante de B-777 em uma Empresa dos
Emirados Árabes. Ele se casou com Fake Blond e eles têm um filho, o Smart Jr.
Sá Btudo está aposentado do voo devido a problemas de saúde. Ele
trabalha como Instrutor Free Lancer de simulador de voo.
Veter Ano, apesar dos problemas de coluna, ainda trabalha como
piloto em uma Empresa Regional.
A velhinha do sonho do Smart eventualmente ainda o aterroriza nos pesadelos.
Carlos Justo é Procurador do Estado.
Happy Landings
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